Jornal do Voto-E

Recorte da     Agência Estado
Rio de janeiro, 23 de abril de 2001

A ética e o profissional de informática
de Michael Stanton

Professor Titular do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense
(publicação autorizada) - [Página original]


As revelações da quebra do sigilo de uma votação secreta no Senado federal tornaram-se manchete dos principais jornais e capa das revistas semanárias nos últimos dias, com desdobramentos políticos ainda desconhecidos. Vamos aqui examinar mais especificamente o lado técnico da questão, dando ênfase ao papel fundamental dos profissionais de informática envolvidos no caso, e discutindo as responsabilidades destes profissionais perante a sociedade. Preciso esclarecer que, como profissional de informática, atividade que exerço há quase 30 anos, sinto que a minha profissão foi denegrida por estes acontecimentos, e é preciso mostrar que existe um lado mais iluminado da questão.
O profissional de informática é uma criação dos últimos quarenta anos. Os primeiros computadores apareceram no país no início dos anos 60, e, logo em seguida, encontraram aplicação em toda espécie da atividade no governo, nos bancos, na indústria, no comércio, na academia, e, mais recentemente, no cenário doméstico. Em todas estas áreas, podemos distinguir entre os usuários, e a retaguarda de "suporte", assistência técnica prestada por profissionais da área. Estes profissionais têm se mostrados essenciais, em função da relativa complexidade da tecnologia de computação, e para ser bom profissional requer muito estudo e prática do ofício, como é também o caso de outras profissões mais antigas, por exemplo, da engenharia ou da medicina. Porém, os engenheiros e os médicos admitem explicitamente sua subordinação à sociedade através do seu juramento ao ser admitido na profissão, e através do trabalho fiscal dos CREAs e CRMs, que têm poderes até de cassar o registro dos seus profissionais.
Isto não acontece com os profissionais da informática, por uma série de razões, entre as quais a existência de muitos caminhos para chegar ao exercício da profissão, não sendo sequer essencial realizar um curso universitário para adquirir competência. Conheço vários profissionais de muita experiência que estão nesta situação, porque entraram nesta atividade quando ela ainda era bastante jovem, sem a oferta de cursos profissionais que hoje existem. A principal sociedade profissional do ramo no País, a Sociedade Brasileira de Computação (www.sbc.org.br), defende esta variedade de formação, se opondo à regulamentação da profissão nos moldes exclusivistas tradicionais, com entrada na profissão controlado por um conselho regional, através da obtenção de um diploma de curso superior específico. Ao invés disto, a SBC prefere que seja promovido um reconhecimento mais informal da competência do profissional, e adotado um código de ética e conduta profissional. Infelizmente, ainda não foi resolvida esta questão, e atualmente não existe uma regra nacional para examinar o comportamento e a eficiência destes profissionais.
Entretanto, há modelos em abundância, adotados por congêneres da SBC nos EUA, Grã Bretanha, Itália, e assim em diante, e também por institutos de engenheiros, como o IEEE dos EUA (veja a lista em www.eos.ncsu.edu/eos/info/computer_ethics/basics/codes . Do código de ética de conduta profissional da Association for Computing Machinery (ACM), o congênere da SBC nos EUA com 80.000 sócios, o preâmbulo começa "Espera-se de todo sócio da ACM um compromisso de conduta profissional ética" (ACM, 1992 - www.acm.org/constitution/code.html). O código de ética do IEEE inclui o preâmbulo "Em reconhecimento da importância de nossa tecnologias em afetar a qualidade de vida em todo o mundo, e ao aceitar uma obrigação pessoal à nossa profissão, a seus membros, e a nossa comunidade, nos comprometemos a adotar os mais altos padrões de conduta ética e profissional" (IEEE, 1990 - www.ieeeusa.org/DOCUMENTS/CAREER/CAREER_LIBRARY/ethics.html. O Comitê de Ética do IEEE também publica uma orientação para engenheiros que precisam discordar com ordens dos seus chefes por razões éticas, e reconhece que há circunstâncias onde seria aconselhável pedir demissão, ou denunciar a falta de ética das ordens através de canais apropriados.
O painel do Senado é um engenhoca cuja função é facilitar o registro dos votos dos senadores. O software do computador que controla o painel foi feito por uma empresa especializada, porém no ano passado este software foi confiado ao Prodasen, o serviço de informática do Senado, após o término do contrato de manutenção pelo fabricante. O software original incluía mecanismos para preservar o sigilo dos votos dos senadores em votações secretas, em acordo com o artigo 55o da Constituição federal para votar a cassação de um senador por falta de decoro parlamentar. Segundo as mais recentes declarações da ex-presidente da Prodasen, profissional de informática, foi ela mesma quem comandou o processo de adulteração destes mecanismos, realizado durante a madrugada que antecedia a votação da cassação do senador Luís Estêvão. Alega ela que apenas cumpria ordens superiores, apesar da flagrante inconstitucionalidade de qualquer ordem neste sentido. E só foram dadas estas suas declarações, depois da perícia realizada por profissionais da Unicamp, demonstrando cabalmente a adulteração efetuada, provavelmente porque um dos seus subordinados iria denunciá-la como mandante do crime. Antes da realização da perícia da Unicamp, ela mentira sobre o caso. Estamos, pois, assistindo a derrocada da carreira profissional desta senhora, que traiu a ética e a lei no exercício da sua profissão, e deverá pagar por isto. Ela se achava soberana no manejo dos computadores sob sua responsabilidade, sem nada dever à sua profissão e à comunidade (a nação, neste caso), e esqueceu que poderia ser realizada uma auditoria destes computadores por outros profissionais não comandados por ela. É um caso exemplar.
A vulnerabilidade do painel do Senado nos lembra do outro engenhoca de votação eletrônica já discutido aqui na coluna de 13 de novembro de 2000, que é a urna eletrônica. Igual ao painel do Senado, a urna eletrônica é basicamente um computador, programado por profissionais de informática, por sua vez comandados por seus chefes. O TSE quer que o eleitorado acredite que as urnas funcionem corretamente, e não estejam viciadas como estava o painel do Senado. Mas qual é a evidência apresentada para dar este crédito? Ela simplesmente não existe. Tudo fundamentalmente se reduz à fé cega nas boas intenções do TSE. Outra vez, podemos nos socorrer com as organizações profissionais da informática, que para estes casos defendem o uso de revisão pelos pares ("peer review") do projeto implementado. No caso, isto significa publicar antecipadamente os detalhes do software utilizado nas urnas eletrônicas, para que sua correção possa ser examinada e verificada por toda a sociedade, e, se necessário, o software possa ser corrigido. É a maneira mais segura de encontrar e sanar erros de projeto, e explica porque projetos abertos, como Linux, geralmente sofrem de menor número de erros ("bugs") do que projetos fechados, como Windows. O TSE alega que as urnas incluem rotinas de criptografia desenvolvidas pela Agência Brasileira de Informações - ABIN, cuja publicação enfraqueceria a proteção dada. A resposta é que os melhores algoritmos criptográficos não requerem do sigilo para funcionar bem - basta proteger as chaves criptográficas usadas.
Agora que os profissionais de informática do Senado mostraram que têm pés de barro, é hora de insistir nova e publicamente com o TSE para que sua grande contribuição para a realização eficiente de eleições neste País não esteja para sempre considerada suspeita por observadores desconfiados das intenções dos poderosos. Ainda há tempo de fazer isto antes das próximas eleições, e a democracia agradece.
Em tempo, após de compor estas últimas linhas, fiquei sabendo que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em reunião do dia 18 de abril, havia voltado a discutir o projeto de lei 194/99, de autoria do senador Roberto Requião, que foi descrito na nossa coluna de 13 de novembro de 2000, e que pretende tornar mais transparente ao eleitor o uso das urnas eletrônicas. Como conseqüência direta do caso do painel do Senado, está sendo impressa maior urgência à discussão deste projeto de lei, com a criação dentro da CCJ de uma "Subcomissão do Voto Eletrônico" (SVE), integrada pelos senadores Requião, Belo Parga e José Dutra. Esta SVE deverá colher e apresentar em 30 dias sugestões para o aumento da transparência da produção do software usado nestas urnas. Adicionalmente deverá ser organizado até junho um seminário para discutir propostas de modificação do próprio projeto das urnas eletrônicas, visando sua adoção antes das eleições de 2002. (Estas informações são devidas ao incansável engenheiro Amílcar Brunazo Filho, moderador do Fórum do Voto Eletrônico - www.votoseguro.org.

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